Eu poucas vezes canto os casos melancolicos, Os lethargos gentis, os extasis bucolicos E as desditas crueis do proprio coração; Mas não celebro o vicio e odeio o desalinho Da muza sem pudor que mostra no caminho A liga á multidão. A sagrada poesia, a peregrina eterna, Ouvi dizer que soffre uma affecção moderna, Uns fastios sem nome, uns tedios ideaes; Que ensaia, presumida, o gesto romanesco E, vaidosa de si, no collo eburneo e fresco, Põe crémes triviaes! Oh, pensam mal de ti, da tua castidade! Deslumbra-os o fulgor dos astros da cidade, Os falsos ouropeis das cortezãs gentis, E julgam já tocar-te as roçagantes vestes Ó deusa virginal das coleras celestes, Das graças juvenis! Retine a cançoneta alegre das bachantes, Saudadas nos wagons, nos caes, nos restaurantes, Visões d'olhar travesso e provocantes pés, E julgam já escutar a voz do paraiso, Amando o que ha de falso e torpe no sorriso Das musas dos cafés! Oh, tu não és, de certo, a virgem quebradiça Estiolada e gentil, que vem depois da missa Mostrar pela cidade o seu fino desdem, Nem a fada que sente um vaporoso tedio Emquanto vae sonhando um noivo rico e nédio Que a possa pagar bem! Nem posso mesmo crêr, archanjo, que tu sejas A menina gentil que ás portas das egrejas Emquanto a multidão galante adora a cruz, A bem do pobre enfermo á turba pede esmola Nas pompas ideaes da moda, que a consola Das magoas do Jesus! E nas horas de luta emquanto os povos choram E a guerra tudo mata e os reis tudo devoram, Não posso dizer bem se acaso tu serás A senhora que espalha os languidos fastios Nos pomposos salões, sorrindo a fazer fios Á viva luz do gaz! Tu és a apparição gentil, meia selvagem, D'olhar profundo e bom, de candida roupagem, De fronte immaculada e seios virginaes, Que desenha no espaço o limpido contorno E cinge na cabeça o virginal adorno De folhas naturaes. Tens a linha ideal das candidas figuras; As curvas divinaes; as tintas sãs e puras Da austera virgindade; as bellas correcções; E segues magestosa em teu longo caminho Deixando fluctuar a tunica de linho Ás frescas virações! Quando trava batalha a tua irmã Justiça Acodes ao combate e apontas sobre a liça Uma espada de luz ao Mal dominador: E pensas na belleza harmonica das cousas Sentindo que se move um mundo sob as louzas No germen d'uma flôr! N'um sorriso cruel, pungente d'ironia, Tambem sabes vibrar, serena, altiva e fria, O latego febril das grandes punições; E vendo-te sorrir, a geração doente, Sentir cuida, talvez, a nota decadente, Das morbidas canções! Oh, vôa sem cessar traçando nos teus hombros O manto constellado, ó deusa dos assombros, Até chegar um dia ás regiões de luz, Aonde, na poeira aurifera dos astros, Contricto, Satanaz enxugará de rastos, As chagas de Jesus! Logar á minha fada ó languidas senhoras! E vós que amaes do circo as noites tentadoras, Os fluctuantes véos, os gestos divinaes, Podeis vel-a passar n'um turbilhão fantastico, Voando no corcel febril, nervoso, elastico, Dos novos ideaes!